O sorteio, a cinemática da vida e um ramo de Oliveira
A vida me deu grandes amigos, sem dúvida, mais e melhores do
que eu mereço. Como dizíamos antigamente, amigos de calça curta. Dizíamos isso
lembrando do tempo em que a gente queria crescer para poder usar calça
comprida, pois calça curta era coisa de criança. Depois inventaram a tal da
bermuda, e essa distinção acabou. Lembro-me bem da alegria quando, ao passar
para o segundo ginasial do Loyola o uniforme era de calça comprida. Saímos dos
menores e passamos para os médios! Já nos sentíamos quase dos maiores, e
olhávamos com superioridade as crianças de calça curta.
Bom voltando aos amigos, eles vão se agrupando conforme
nossas histórias. A turma da rua, do colégio, do futebol, dos primos, de Lafaiete, da
Engenharia, do CPOR. Passaram-se os anos, muitos, por sinal, e alguns desses
amigos perderam-se nas memórias, esvaíram-se no tempo, à medida que a vida
interrompia a nossa convivência. Alguns, sabe-se lá bem o porquê, não arredaram
pé e a amizade continuou por décadas, atravessou a graduação, a vida
profissional, a maturidade e chegou na velhice. Não que eu me sinta velho, mas
o espelho não me deixa mentir.
A vida traz alguns presentes incríveis, e um deles para mim
foi ter servido no CPOR BH, garoto de 19 anos, passando de moleque a homem,
aprendendo a olhar a vida com uma nova perspectiva, entendendo pela primeira
vez o que é a responsabilidade de um comando. E, principalmente, fazendo amigos
dos quais muitos permaneceram até hoje e que, se não estiveram presentes ao
longo de toda minha caminhada, vieram me reencontrar anos depois.
Um desses especiais amigos, carinhosamente apelidado de
Joãozito, indivíduo de humor aprimorado e grande entusiasmo pela vida, pessoa
de gosto refinado e excepcionalmente culto, conhecedor e bebedor de bons vinhos,
viajante que aprecia suas viagens como se Marco Polo fosse, desvendando,
desbravando e degustando cada uma, um dia se apaixonou pela Ana Luiza e
resolveu se casar. Bom, não propriamente resolveu, a história é um pouco
diferente. Segundo ele, a namorada, viúva como ele, vendo que ele não se decidia,
resolveu pedi-lo em casamento e ele prontamente aceitou. Mas isso são outros
quinhentos...
Organizamos um encontro para fazer o que seria, usualmente,
uma despedida de solteiro. O Joãozito prontamente nomeou o encontro de
despedida de viúvo, título mais do que apropriado. Conto isso para descrever um
pouco o espírito do nosso personagem, sempre brincalhão e original.
Resolveram se casar apenas no civil. Na comunicação do
casamento aos amigos, uma grande e linda medida: os noivos ficariam felizes se
cada amigo os presenteasse com uma doação a uma casa que educa mais de 650
crianças carentes na Pampulha, o Lar de Antonio Tereza.
Chegando mais próximo da data do casamento fui surpreendido
por um telefonema do noivo, perguntando se eu tinha algum compromisso no dia de
seu casamento e me informando que tinha resolvido convidar, da turma do CPOR,
apenas duas pessoas, e que fizera um sorteio para escolher quem seriam. Dois
sorteados não poderiam comparecer e, na terceira tentativa, saíra o meu nome.
Seria um almoço, na casa de seu filho, em Nova Lima. Aceitei e pra lá fomos, eu
e Angela, minha namorada, que tinha estabelecido uma relação extremamente
carinhosa com a noiva, então quase esposa.
Chegamos lá, e imaginem um trem bacana. Flor pra todo lado,
um ramo de oliveira, símbolo da família que se enlaçava mais ainda, mesas de
doces rigorosamente organizadas em formas e cores. Sentamo-nos a uma mesa no
fundo do salão, de onde podíamos observar o movimento das pessoas em alegria
transbordante.
Para minha alegria o outro sorteado veio para nossa mesa, o
Giffoni, nosso imortal acadêmico da turma do CPOR. Bom, não vou descrever a
festa, as comidas e bebidas, os demais convidados, primeiro porque não sei
fazê-lo, segundo porque não é isso que quero contar
A festa rolava solta, como dizíamos há alguns anos, muita
alegria, conversas com amigos, gente bonita, a cerimônia civil realizada, votos
declarados poeticamente, música ao vivo da melhor qualidade, valsa dos noivos,
essas coisas todas, quando o Joãozito toma do microfone e informa que gostaria
que três dos presentes falassem algo como um presente para os noivos. Achei a
ideia sensacional, visto que havia pessoas de altíssimo nível intelectual
presentes, verdadeiros mestres das palavras. Joãozito então abre sua lista:
Eduardo Andrade, desembargador poeta, que eu só conhecia de nome e de elogios,
Flávio Ramos, colega nosso de CPOR (escolhido por ser da turma do Colégio
Estadual, explicara Joãozito), exímio declamador, e eu, apresentado ao pessoal
como engenheiro de tráfego. O frio na barriga foi imediato, meu Deus do céu, o
João ficou doido! Que que eu vou falar lá na frente? Fechei os olhos e pensei:
vou fazer o que sempre faço, falar com o coração. Só isso. Sobre o que? Sei lá.
Sobre o que meu coração quiser falar.
Mas a cabeça não acredita muito no coração, e enquanto os
dois mestres da poesia declamavam, com suas memórias prodigiosas, todos
escutando embevecidos, eu dava tratos à bola e não conseguia pensar em nada.
Não conseguia escutá-los, para buscar alguma inspiração ou alguma palavra ou
frase na qual eu pudesse me basear. Tentava lembrar de algum caso da vida do
João, algo que ele me tivesse dito, mas nada.
De repente percebi que tinha chegado a minha vez e ele me
chamava à frente. Nusga, é agora! No caminho entre as mesas pensei: fui
apresentado como engenheiro de tráfego, que lida com movimentos, analisando-os
e buscando compreendê-los, trazendo para o dia a dia das pessoas conceitos
matemáticos e fórmulas misteriosas que tentam minimizar os transtornos dos
congestionamentos, a inconveniência das horas perdidas, essas coisas que tanto
nos aborrecem. Vai ser por aí: vou buscar a poesia nessa nossa seara tão
inóspita. E então o coração falou pra cabeça: fique quieta que agora eu assumo!
Difícil lembrar exatamente o que falei, mas vamos lá. Vendo
aquela quantidade de gente elegante e bem vestida me olhando com curiosidade,
comecei (e vou tentar escrever igual falei, sem revisão de erros nem buscando a
melhor forma):
Bom, pessoal, boa tarde, eu estou tão surpreso quanto vocês
por um engenheiro de tráfego ser convocado para falar alguma coisa aqui,
principalmente depois de sermos brindados com declamações tão impressionantes.
E ouvindo os dois mestres, pensei: tenho de falar algo pelo menos com um pouco
de poesia. Só que trânsito, infelizmente, é quase sinônimo de congestionamento,
de tempo perdido, de buzinas, barulho, chateação. Devia ser melhor, devia ser
mais calmo, por que não ser até mesmo poético? Por que o tempo no carro, se já
tem música, não pode inspirar também alguma poesia? O que eu, um reles
engenheiro, posso usar a Engenharia para fazer poesia? Trânsito, mesmo
congestionado, é movimento, e movimento se rege pela lei da cinemática, sim,
aquele negócio que a gente estudou no científico, quem fez, na matéria de
Física. Lembram? Cheio de equações que misturavam conceitos como deslocamento,
velocidade, aceleração, enfim, explicações matemáticas para o movimento. E
movimento é vida, movimento é poesia. Olhando agora pro Joãozito e pra Ana,
tudo que eu vejo neles pode ser resumido numa das equações da cinemática, que
explica muitas coisas da vida. Quem se lembra disso?
v = v0 + at. Vê igual a vê zero mais at.
Velocidade instantânea é igual a velocidade inicial mais aceleração multiplicada
pelo tempo. Credo, né, mas eu explico.
A história foi assim: ao longo da vida o João e a Ana foram
se movimentando em campos diversos, cada um na sua, cada um com a sua
velocidade própria, sem sequer pensar que o outro existia. Um dia, o caminho
dos dois não se cruzou, mas se emparelhou, e eles perceberam que os dois
andavam na mesma velocidade, viviam no mesmo compasso, e então implacavelmente
a equação da cinemática caiu sobre eles: os dois tinham o mesmo vê zero, a
mesma velocidade inicial a partir daquele momento. Suas velocidades se
ajustaram, e passaram a andar juntos, lado a lado. E logo descobriram, sem
saber da cinemática, que sua velocidade
começava a se modificar, sempre juntos, sempre lado a lado, recebendo a
impulsão do a da fórmula, mas não era o a de aceleração! Era o A de Amor, um
amor que nascia naquele momento e ia se tornando avassalador, aumentando a
velocidade inicial cada vez mais! E esse Amor não estava sozinho, pois era
multiplicado pelo tempo, de uma forma de novo diferente da cinemática, pois não
era o tempo decorrido até aquele instante, mas o Tempo que se iniciava e que
apontava para uma vida nova, a dois, cheia de movimento, cheia de Amor.
E é isso, Joãozito e Ana, que eu aqui, um engenheiro cheio
de fórmulas e raso de poesia, lhes desejo agora: uma vida com muito Tempo para
desfrutarem desse imenso Amor, movimentando-se juntos pelos caminhos da
felicidade. Deus os abençoe e os proteja.
E foi isso.
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