A pensão de tia Zulmira
Osias Baptista Neto
Era verão. Calor bravo, muito sol. Betinho chegou na
rodoviária, mochila nas costas, fones de ouvido com bluetooth, e desceu as escadas para a
plataforma de embarque. Até que enfim, férias! Não podia esperar a hora de ver
o mar, comer aquele camarãozinho e tomar aquela cerveja gelada. Paulinho, seu
melhor amigo, havia lhe recomendado:
"Que Cabo Frio que nada, cara! Você tem que ir é pra
Barra do Curupiri, o melhor lugar do mundo! Ficar na pensão da tia Zulmira,
velhinha incrível, o maior barato! Chega de programa de mineiro, sô! Vou passar
um telegrama pra ela, avisando que você vai pra lá."
A viagem até Salvador foi cansativa, mas sem novidades.
Estrada longa, partes ruins, partes boas, muito trânsito, mas todo mundo de pé
embaixo. Deu para dormir meio torto, felizmente a poltrona do lado estava
vazia. Em Salvador comprou passagem para Esplanada, onde pegaria outro ônibus.
É, o lugar devia ser danado de bom para o Paulinho recomendar, dando esta
trabalheira toda para chegar...
Em Esplanada, as dúvidas começaram a aumentar.
"Barra do Curupiri? o seu moço tem que esperar até meio
dia, tomar a marinete do Baixio, que passa no Curupiri. Tá de sorte, que hoje
tem. O outro só quinta feira."
Almoçou no bar, onde o ônibus parava, e esperou. Às duas da
tarde, aquele calor enorme, o garoto do bar grita que a marinete chegou.
"Valha-me Deus, e eu que achava os ônibus de Carmo da Mata velhos! Esse
daí deve ter mais de vinte anos... Seja o que Deus quiser!"
Entrou no ônibus, aquele povo esquisito, castigados pelo
sol, peles curtidas, uns descalços, outros de sandália de couro. Uma mulher
mais ou menos da idade dele, com um vestido colorido e um neném no colo, com
uma chupeta vermelha na boca, todo babado. Um menino de uns cinco anos, que ficava
olhando para ele como se ele fosse algum bicho raro. E todos calados, no meio
daquele calor.
Logo o ônibus deixou o asfalto, e entrou numa estrada de
chão batido, cheia de costelas, uma poeira só. Do lado de fora, sertão bravo.
Parecia que não chovia havia anos. A poeira entrava pela janela, batia nos
olhos, mas ninguém importava. Só ele e o neném, que disparou a chorar. A mãe
abriu o vestido e deu de mamar, e ele sossegou.
Duas horas depois, foi acordado por um barulhão enorme, o
ônibus parando. Só faltava esta, o ônibus tinha estragado! Betinho foi o primeiro a descer, depois do motorista.
Ao abrirem o cofre do motor, uma fumaceira enorme.
"É, parece que desta vez fundiu mesmo... Ontem eu ainda
consegui arrumar, mas hoje não vai dar não. O jeito vai ser esperar ajuda.
Olha, gente, danou-se o motor! Vamos esperar se passa alguém".
Gente, naquele fim de mundo, não tinha não. Só sol, poeira e
calor. O pior é que Betinho não havia se lembrado de comprar água para levar.
Haja sede! E raiva de estar ali, uns dois mil quilômetros de Carmo da Mata,
fazendo o que? "O Paulinho me paga, quando eu voltar!"
Anoiteceu, e nenhuma viva alma apareceu. Os outros
passageiros, conformados, conversavam um pouco entre si, as vozes baixas, sem
reclamar. Parecia que estavam acostumados a este tipo de viagem. Só o Betinho
andava de um lado para o outro, mochila nas costas, pois tinha medo de deixá-la
dentro do ônibus e alguém mexer. Lá pelas dez horas apareceu um farol ao longe.
Era a salvação! Mas que salvação... Um caminhão talvez mais velho que o ônibus,
mas que deu para caber todo mundo com as bagagens na carroceria, e que seguiu
pela buraqueira.
Por volta de meia noite o caminhão parou no meio de um
amontoado de casas e o motorista falou pela janela:
"Barra do Curupiri, pode descer, seu moço, e fica com
Deus."
Quando o caminhão seguiu viagem é que Betinho se deu conta
do fim do mundo em que estava. Uma rua de terra cheia de casebres, sem calçada,
sem viva alma. Só um cachorro deitado, olhando-o sem nenhum interesse. Nenhuma luz
acesa nas casas. Parecia uma cidade fantasma. Nessa altura, entre a raiva e o
medo, a coitada da dona Cotinha, mãe do Paulinho, recebia todo tipo de
homenagens.
Só tinha uma casa de dois andares, no final da rua. Devia
ser lá a tal da pensão da tia Zulmira. Não deu outra, a placa acima da porta
confirmava. Nervoso, Betinho mais esmurrou do que bateu na porta. Um barulho do
lado de dentro, uma luz bruxuleante, e a porta se abre. Apareceu um velho
baixinho, cabelos brancos despenteados, de calção e camiseta, segurando um
castiçal com uma vela acesa. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa Betinho
dispara:
"Tenho reserva em meu nome! Carlos Alberto de Castro, o
Paulo Nelson que já ficou aqui passou um telegrama reservando, mas só vou ficar
até amanhã!"
"O senhor é que é o seu Betinho? O Paulinho mandou
mesmo um telegrama, a Zulmira já arrumou tudo pro senhor. Vamos entrando, vamos
entrando. Desculpe a vela, que o gerador desliga às dez horas. Entre, seu
quarto é o número dois, aqui está a chave, pode subir que o senhor deve estar
cansado! Estávamos esperando o senhor de tardinha, o ônibus não passou, o que
houve?"
Sem responder, Betinho pergunta:
"Onde está a ficha de registro? Quero preenchê-la antes
de subir."
"Ôche, nós não temos isto aqui não! Pode subir, vai
descansar, o banheiro é no fim do corredor. Tome esta vela e estes fósforos.
Seu Paulinho falou que o senhor é igual irmão dele!"
Nem ficha de registro essa pensão tinha! Se ele fosse
roubado não ia poder nem provar que estava hospedado lá. E banheiro no fim do
corredor, onde já se viu? O Paulinho ia ver, quando voltasse...
Abriu a porta do quarto. Imediatamente sentiu aquele cheiro
de coisa antiga, meio mofada. Tinha uma cama de solteiro num canto, uma mesinha
com cadeira e um armário de uma porta. Uma pia, na parede, e uma janela de
veneziana de madeira, fechada. Trancou a porta, calçou o trinco com a cadeira,
para ninguém entrar, urinou na pia, pois naquele banheiro só entraria de dia
com luz clara, deitou-se na cama vestido, por cima das cobertas, usando a
mochila como travesseiro para ninguém roubar. Deitou-se reto, imóvel. A cama
devia estar cheia de percevejos, era melhor ocupar o mínimo possível do
colchão. O armário, com certeza, devia estar cheio de baratas. "Paulinho
me paga..." Tentou ficar acordado, mas o cansaço foi maior, e quando a
vela acabou, Betinho apagou com ela.
Acordou assustado, o corpo doído, na posição que deitara. Já
era dia, nove horas! Tinha de correr para ver a que horas passava o ônibus de
volta. Olhou para o quarto, à luz de uma fresta de sol pela veneziana. A cama
estava impecavelmente limpa, o lençol com a marca de passado a ferro. Na mesa,
nem tinha reparado, um paninho rendado com um vaso de flores, pequeninas e
bonitas. Foi lavar o rosto na pia, uma toalha branquinha dobrada no suporte e
um sabonete novo. E por incrível que parecesse, tudo limpo. Arriscou abrir o
armário. Limpo, com uns seis cabides de madeira, as gavetas forradas com papel
de embrulho cor-de-rosa.
Abriu a janela. Os olhos se ofuscaram com a luz do sol batendo
na areia branca, e lá estava ele, verde azulado, imenso, maravilhoso! As ondas
se quebravam em espuma branca, e os gritos das gaivotas pareciam fundo de
trilha sonora. Puxa vida, nunca tinha visto praia tão bonita! Vazia, só uma
menina deitada de biquini, a uns cinquenta metros de sua janela. Ouvindo o
barulho da janela, ela olhou, e seus olhares se cruzaram. Perdido no conflito
de sentimentos, a raiva do Paulinho, a pressa de voltar, a beleza da praia, o
barulho do mar, Betinho mesmo assim imediatamente sorriu e acenou, e, para
surpresa sua, foi correspondido da mesma forma. As coisas começavam a ficar
interessantes...
Mas não ia cair nesta! Ia embora de qualquer jeito. Escovou
os dentes, pegou a mochila, e saiu do quarto. Passou pelo banheiro, e se assustou
com o asseio. Desceu, e logo no pé da escada encontrou-se com uma velhinha
baixinha e gorda, um sorriso só.
"Bom dia, seu Betinho! Eu sou tia Zulmira. O Paulinho
me telegrafou dizendo que o senhor vinha. Falou que vocês são igual irmãos, e
como eu gosto do Paulinho como se ele fosse meu filho, pode de uma vez se
considerando meu filho também! Vem tomar café, que está te esperando!"
Sem graça, assustado pela cordialidade, Betinho ainda
conseguiu dizer:
"Muito prazer, mas eu não quero, não. Já estou de
saída, vou pegar o primeiro ônibus de volta. Quanto lhe devo pelo
pernoite?"
"Ora, que isto, seu menino! Ônibus agora só amanhã,
assim mesmo se o Tonico conseguir consertar o motor. O Juvenildo soube na venda
que desta vez foi sério mesmo. Já falamos pra ele pra comprar um novo, mas não
adianta. Vem, vem tomar café!"
E puxando Betinho pela mão, entrou num pequeno refeitório
gritando:
"Ernestina, seu Betinho acordou! Vem conhecê-lo e traz
o café, e caprichado que ele tá querendo ir embora! Se ele não ficar a culpa é
sua..."
Da porta da cozinha apareceu uma negra gorda, parecendo
baiana de escola de samba, um lenço branco na cabeça, e uma bandeja cheia de
pratinhos, tão sorridente quanto a tia Zulmira. Fazendo festa para o Betinho,
serviu-lhe o maior café que ele já tinha tomado na vida. Café com leite, é
claro, suco de acerola, suco de cacau, suco de manga, bolo de fubá, bolinho de
tapioca, e vai por aí a fora. Enquanto comia, chega o velhinho da noite:
"Ora ora, seu menino já acordou! Bom dia, bom dia. Veja,
trouxe-lhe o jornal de Salvador. É de ontem, pois vem na marinete do Tonico, e
que por sinal fundiu mesmo o motor. O Edinaldo passou lá cedinho e trouxe os
jornais."
O mês de férias do Betinho passou num instante. Todos os
dias lia o jornal da véspera, trazido sempre no café pelo Juvenildo. Conhecia
todos os moradores do Curupiri, os pescadores, o Edinaldo da venda, com quem
sempre tomava uma cerveja de tarde, o Manezinho da barbearia, e principalmente
Lindalva, a morena que vira na praia, da janela do quarto. Paixão fulminante,
seu coração batia forte só de pensar nela.
Já era a hora das despedidas. Tia Zulmira, as lágrimas
escorrendo, dizendo que bendito era o Paulinho, que tinha arranjado para ela
mais um filho, um menino bom daqueles como ela nunca tinha visto, e que tinha
de voltar sempre, Juvenildo, Edinaldo, todo mundo. E Lindalva, beijo molhado,
soluçando:
"Promete que volta, promete que escreve, se papai
deixar em julho eu vou te encontrar em Belo Horizonte, ou até mesmo em Carmo da
Mata, se você for pra casa..."
Chega Tonico com o ônibus. Betinho sobe, fica na janela
dando adeus pra Lindalva, um nó no peito danado, já pensando no dia em que
poderia voltar, escrevendo mentalmente a primeira carta. Aí lembrou-se de
Paulinho, pela primeira vez desde o primeiro café da manhã na pensão da tia
Zulmira. "Amigão, o Paulinho... Só ele mesmo pra me mandar pra cá..."
Olhou em volta. Era o mesmo ônibus, do Tonico, mas parecia
maior, mais bonito. As pessoas todas simpáticas, curtidas de sol iguais a ele
mesmo, depois da praia. Uma menina linda, novinha, com um neném no colo,
dormindo. Um menino de uns cinco anos, que lhe deu um grande sorriso. Sorrindo de volta para o menino, lembrou-se que não tinha escutado o smatphone nenhuma vez, nem sentira falta da internet, e sentiu que não estava com
vontade de ouvir suas músicas de rock pesado, mas sim a música sertaneja do rádio
da venda do Edinaldo. Deixou o aparelho na mochila e fechou os olhos. E
então compreendeu que o ônibus era o mesmo, as pessoas dentro do ônibus eram as
mesmas, a Barra do Curupiri era a mesma, a pensão da Tia Zulmira era a mesma
daquela noite em que chegou, nervoso e cansado. Ele é que tinha mudado, se
transformado em uma pessoa melhor. E, agradecendo mais uma vez a Paulinho,
irmão de sangue e de coração, fechou os olhos e adormeceu.
Que delícia de história, Zia!
ResponderExcluirObrigado!!
ExcluirMuito bom. Conteúdo e forma de leitura bem agradável. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado!!
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