A carta


Julho de 2019

A vida recomeçara, no seu ritmo alucinado de estudante de Engenharia. Trabalhava de dia, como técnico em uma consultora, e estudava à noite, na FUMEC. Morava perto da escola, ia direto do trabalho, comia um macarrão ou coisa do tipo nos carrinhos que ficavam na Rua Cobre, perto da entrada, e depois da aula era só descer a ladeira e num minuto estava em casa.

Não era bem “casa”, casa mesmo era em Carmo da Mata. Morava num quarto alugado no apartamento de Dona Maricas, velhinha simpática de Itabirito que alugava dois quartos para estudantes, que a chamavam carinhosamente de tia, complementando com isso sua minguada aposentadoria. Seus filhos, esses moravam longe, no Rio e em São Paulo, dificilmente davam as caras por lá. Mas ela se divertia com os rapazes, gostava de prosear e até mesmo de tomar uma cerveja com eles. De preferência preta, malzbier. Dizia que cerveja clara era para os jovens, mas se não tivesse escura tomava também. Chamava os rapazes, que eram quatro, de meus meninos. Os seus meninos eram o Betinho, que dividia o quarto com o Paulinho, os dois estudantes de engenharia civil, o Thiago, que fazia arquitetura de manhã e o Cláudio, cursando direito. Que, como ela dizia rindo, de direito só tinha o curso, porque era o mais levado dos quatro. Thiago ria e dizia que na verdade era o mais quieto, só era levado porque os outros o levavam pra farra, ele ia obrigado.

Betinho acabara de voltado das férias, lá na Barra do Curipiri. Logo que chegou deu o maior abraço em Paulinho, agradecendo a indicação do lugar e da pensão da Tia Zulmira. Ficaram horas conversando sobre o lugar, as pessoas, os sentimentos, como era ficar numa região onde não havia internet nem telefone. Parecia um outro mundo, longe de tudo, da escola, do trânsito, das redes sociais.

Paulino rira e disse que, se contasse para ele que ia ser assim ele não teria ido de jeito nenhum, com o que o Betinho concordou rindo:

“Hahaha, num tinha ido mesmo, sô! Mais eu num podia pensar que seria como foi!”

Falaram muito de Lindalva. Quando Paulinho esteve lá ela estava de férias, na casa do tio, em Salvador. Falar dela dava uma saudade danada, o peito de Betinho até doía, mas parecia que a conversa a trazia um pouquinho para perto.

Era uma situação complicada, pois acostumado a só conversar pelo whatsapp, como iria conversar com ela tão longe? Ao sair prometera-lhe que escreveria uma carta, mas nunca tinha feito isso na vida. Como escrever? Tentou várias vezes, no celular, no notebook, de manhã cedinho, ao acordar, à noite, depois da escola, mas não conseguia escrever. Era só terminar a primeira frase que a achava completamente ridícula. Parecia trabalho de escola, não podia abreviar as palavras nem usar os emojis. Escrevia, apagava. Escrevia de novo, apagava. Nem chegava na segunda frase. Tentou escrever um poema, saiu pior ainda.

Lembrou-se de seu pai, em Carmo da Mata, contando que quando começara a namorar sua mãe, antes da internet, estava uma noite na varanda da fazenda, noite de lua cheia, bonita no céu estrelado, ouvindo um disco de música italiana (era o máximo do romantismo na época), copo de cerveja do lado, escrevendo uma carta para ela, que morava em Baependi, escolhendo as palavras para colocar na carta a mais profunda das emoções, quando o seu avô chegou. O velho Wilson, lá pelos sessenta anos, homenzarrão de voz grossa e forte, era profundamente pragmático em certas coisas, e essa foi uma delas.

“Que cê tá fazendo aí, filho, com essa cara de cachorro que espera a janta?”
“Uai, pai, tô escrevendo uma carta pra Clarinha.”
“Filho, vou te ensinar um negócio. Escreve mesmo, bota tudo que vai no seu coração aí nessas folhas de papel. Mas nun fecha o envelope não. Coloca na mesa do seu quarto, amanhã cedim cê acorda, toma seu banho, seu café e antes de sair pro trabalho, dá uma lida nisso aí. Leia com calma, sem pressa. Depois que fizer isso, se ainda tiver coragem de mandar a carta, vai lá e bota no correio.”
Virou-se e saiu resmungando: “Hum, e ainda tomando cerveja...tá danado, sô...”

Seu pai contou que na manhã seguinte seguiu o conselho do pai. Leu a carta, uma, duas vezes. “Putz, como é que eu fui escrever essa bobajada toda?”pensou. Rasgou em pedacinho e lixo!! Sua mãe ria muito dessa estória, dizendo: “Esse seu Wilson...”

Mas pelo menos o pai conseguia escrever. Betinho chegou a buscar na internet modelos de cartas de amor, mas era cada uma mais brega que a outra. Não era o que sentia. E assim, o tempo foi passando e, carta mesmo, nada.

Uma noite teve uma prova de estradas, foi mal, precisava de muitos pontos e achava que não ia conseguir. Voltou para casa aperreado, nem quis tomar a tradicional cervejinha do boteco da esquina, onde discutiam as respostas das provas e falavam mal dos professores. Desceu direto para casa, chutando qualquer coisa que estivesse no caminho.

Mal entrou ouviu a voz da tia Maricas: “Betinho, vem cá, preciso te dar uma coisa”.

“Ich”, pensou. “Que será que ela aprontou? Não estou pra conversa hoje não”.

Na última vez que a tia o tinha chamado assim, de noite, tinha lhe dado um livro de novenas para rezar para passar nas provas, coisa que, obviamente, ele não tinha nem aberto. E todo dia ela perguntava: “Fez a reza de hoje? Não? Por isso é que tá perdendo média! Êta menino, sô!”

“Tia, amanhã eu vou aí, tô com dor de cabeça, vou dormir. Amanhã conversamos. Boa noite!”

E foi dormir sem dar mais satisfação para a velha senhora, que apenas disse, amuada: “Tá bom, cê que sabe”.

No dia seguinte acordou melhor, menos chateado. Tomou seu banho e foi para a cozinha tomar café. Tia Maricas estava lá, o café acabando de passar, aquele cheirinho gostoso, pão fresco na mesa. Mal olhou para o Betinho, respondendo em voz baixa o seu bom dia.

“Nusga, chateei a velha ontem, pelo visto” pensou. “Melhor virar esse jogo”.

“Tia, que café delicioso! Só assim para curar minha dor de cabeça de ontem!”

“Chegou cedo, nem me deu confiança. Cê que saiu perdendo.”

“Como assim? Eu fui mal na prova, tava chateado, desculpe, tia... Perdendo por que?”

“Olha ali em cima do aparador na sala o que chegou procê. Eu ia te dar, só para ver sua cara na hora. Mas cê num quis. Garanto que ia curar sua dor de cabeça!”

Curioso, Betinho foi até a sala e no aparador havia um envelope esquisito, com as beiradas listradas de verde e amarelo, parecendo coisa de manifestação política. Mais curioso ainda apanhou e leu, na frente do envelope, escrito à mão: Ao engenheiro Alberto de Lima Santos, e o seu endereço.

“Uai, eu ainda nem formei, que brincadeira é essa?”, pensou. Virou o outro lado do envelope e o coração quase parou quando leu: De Lindalva Souza e Silva, Rua Beija Flor, 33, Barra do Curipiri, Bahia.

Deu uma engasgada, e a Tia Maricas disparou a rir na porta: “Num falei, menino?”

Olhava o envelope. Uma letra certinha, bonita, parecendo letra de professora. Não resistiu e cheirou. Jurou eu tinha perfume. Voltou para dentro do quarto, entrou, Paulinho já tinha saído, fechou a porta. Seu coração estava disparado, as mãos tremiam.

“Nossa, o que será que ela escreveu? Tem dois meses que eu voltei e não escrevi. Como vou falar pra ela que eu não consegui? Vai ser o maior mico... Será que ela escreveu terminando tudo?”

E olhava o envelope, a letrinha bonita, as linhas retinhas, a disposição dos textos bem feita. Nunca tinha recebido uma carta escrita, apenas mensagens no celular. Como seria?

Ficou olhando o envelope, pensando em Lindalva, talvez aborrecida porque ele não tinha escrito. 

Depois de uns minutos pegou uma tesoura e abriu cuidadosamente o envelope. Era uma carta de duas páginas, escrita num papel fininho que ele nunca tinha visto antes. Lembrou-se de que sua mãe lhe mostrara uma vez uma carta de seu pai, escrita quando ele servia o 11ºRI em São João Del Rey, e lhe contava sobre um ataque ao quartel, na época do regime militar. Era um papel desse tipo. Não sabia que ainda existia isso.

A carta era escrita à mão, em tinta azul, o papel era sem a marcação das linhas, lembrou-se de que se chamavam pautas, mas as frases escritas estavam completamente alinhadas, como se elas existissem.

“A cara da Lindalva”, pensou.”Tudo certinho, lindo, arrumado...”

Começava assim: “Betinho querido”. Ela então não estava com raiva!!!!

Betinho devorou as duas páginas. Lia, relia, ria, lia de novo. Ler com aquela letrinha certinha era como se estivesse ouvindo a voz de Lindalva, aquele sotaque gostoso do pessoal do norte da Bahia, Olhava cada palavra e pensava: ela é que escreveu isso, foi a mão dela que traçou essas letras, isso é uma obra dela, um pedaço dela. Nunca tinha sentido essa sensação. Aquele papel era um pedaço de Lindalva, enviado dentro de um envelope pelo correio. Fazia sentido isso? Nenhuma mensagem de zap zap chegava perto disso. Nenhum texto impresso conseguiria transmitir aquela sensação. Achou que a letra talvez definisse um pouco quem escreveu.

E as palavras, como fluíam fácil na leitura... Eram iguais à sua maneira de falar, simples, risonha. Não precisava de palavras bonitas, parecia com as suas conversas na praia, vendo o sol se pôr, as ondas se quebrando e o vento nas palmeiras. Não havia uma só frase buscada em livro, nenhuma declaração de amor copiada, nenhum poema. Apenas o cotidiano, descrito com uma leveza encantadora. Pensou nas mensagens replicadas no zap ou no face, com poesias ou textos postados ao som de músicas românticas sobre cenas de flores, pássaros ou paisagens, em uma velocidade que não acabava nunca e que as pessoas achavam que era a forma de se expressar, mandando-as umas para as outras na ilusão de que elas poderiam representar seus sentimentos pré-fabricados.

A carta não, a música era a que lhe vinha na cabeça, lembrando as do rádio da venda do Edinaldo. O ritmo da leitura era ele que dava, adaptando-a ao modo de falar gostoso de Lindalva, a letra era a dela, do jeito dela, com o capricho dela. Escrever à mão livre com capricho, pensou, é uma forma de expressar um sentimento, diferente de digitar. Envergonhou-se de pensar que ia mandar para ela uma carta impressa, sem a personalidade da letra cursiva. Mas sua letra era terrível, como iria fazer? Mas era ela que o descreveria, que o representaria.

A carta terminava assim: “Um beijo, com saudades, Lindalva”.

Agora a bola estava com ele.



 

Comentários

  1. Muito legal esse negócio de "baū" de escritos alojado nas nuvens ao sabor dos ventos, da chuva e dos pássaros indomáveis! Puxa, fiquei pensando se só por ser pássaro vai ser assim, livre pra voar... (in) domável !?
    Delícia de ler e imaginar essa relíquia de carta com essa inusitada viagem descrita no outro conto, no tesão sofisticado desse encontro de almas em territórios tão diferentes!
    Já te sabia poeta! Agora vem as cerejas dos contos - bom demais de ler!
    Vai, Osias, cavaqueando... que, na melhor das hipóteses, eu volto para espiar seu baú, porque me faz sorrir... nas nuvens!!! Delícia de viagem...



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