A árvore
Maio de 2020


“Moço, responde, pelo amor de Deus! Fala comigo!”
A voz vinha de longe, desconhecida. Abri os olhos e vi uma velhinha, com a fisionomia agoniada, apertando meu braço, tremendo. Ao me ver de olhos abertos, sua fisionomia se transformou em uma expressão de alívio, enquanto falava, baixinho:
“Cê tá vivo, cê tá vivo, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”

Era o dia 7 de março de 1995, uma manhã de céu azul, sem nuvens. Há apenas uma semana ocupando uma das diretorias do DER/MG, eu havia saído de casa antes das sete, para deixar minha filha Rachel no Instituto Isabela Hendrix, na Rua Espírito Santo, dar uma passadinha no meu escritório no Santo Antônio e em seguida me dirigir ao novo posto, onde chegaria por volta das nove horas da manhã.
Nesse dia, sem motivo nenhum, resolvi não ir ao escritório e ir direto ao DER, para ter mais tempo para ler os documentos da diretoria antes do pessoal chegar. No caminho da escola eu e Chel fomos conversando, um papo alegre, descontraído, cheio de brincadeiras. Rachel sempre foi muito espirituosa e divertida. Deixei-a na escola e foi nesse momento que decidi ir direto para o DER. Pensei que poderia aproveitar que a equipe ainda não teria chegado para ler mais um pouco sobre as atividades em andamento na diretoria. Seguia em frente, pela Rua Espírito Santo, quando na esquina com Avenida Bias Fortes avistei um amigo do tempo em que eu trabalhava na Mello de Azevedo, o Paulinho. Ele chegou na janela do carro, cumprimentou-me rapidamente e disse que precisava falar comigo um assunto. O semáforo abriu e eu lhe disse, quase ao arrancar:
“OK, me telefona depois, que agora eu estou atrasado para um compromisso” e arranquei o carro, despedindo-me dele.
Coisa estranha, pensei. Atrasado pra nada. Não entendi de onde saiu essa ideia maluca. Enfim...
Ainda me lembro de que ele me olhou com uma cara estranha, talvez meio decepcionado com minha atitude. Paciência, pensei. Depois ligo pra ele.
Eu tinha um Monza 1984, preto, com um teto solar de vidro escuro que deixava passar o sol, queimando minha careca, já significativa nessa época. Por isso havia passado um papel contact preto por dentro, cortando a luz. O teto abria levantando a frente, fazendo entrar o ar quando o carro se movimentava, mas eu não gostava de usá-lo. Na verdade, a única vez que ele tinha servido para alguma coisa fora na comemoração da Copa de 1994, quando fomos para a rua com os meninos se revezando em pé no banco, corpo para fora, gritando “Brasil campeão!” ao som de centenas de buzinas.
Na rua Timbiras, em frente à Loja Arthur Haas, antiga revenda Chevrolet, quase na esquina com Afonso Pena, parei atrás de um ônibus. Ao meu lado parou um Omega preto, com um casal. Era o Coronel Clenis Mafra, que trabalhara comigo na BHTRANS alguns anos antes, e ao seu lado sua esposa Auxiliadora. Saudamo-nos afetuosamente e entabulamos aquela conversinha rápida de parada em sinal, onde se pergunta e se responde tudo num átimo de tempo, entre sorrisos de amizade. Então o sinal abriu e eu novamente me surpreendi quando falei:
“Mafra, vou entrar na sua frente para ultrapassar esse ônibus, estou com muita pressa, pode ser? ”
No seu jeito de oficial de alto comando ele fez uma continência sorrindo e esperou que eu entrasse à sua frente para arrancar. Saí, novamente sem entender porque eu repetira uma pressa que não sentia. Ainda pensando nisso, ao descer pela Alameda Ezequiel Dias, Parque Municipal de um lado, hospitais do outro, cheio de árvore frondosas, seguindo atrás de um motorista de táxi que me pareceu desnecessariamente lento, fiz uma coisa que nunca havia feito e que nunca mais repeti: pisquei os faróis para que ele me desse passagem. O sujeito encostou o carro à direita, talvez vendo em minha pressa alguma coisa pelo fato de estarmos em uma área hospitalar, e eu o ultrapassei, acelerando.
Nesse momento ouvi um barulho enorme, um baque com enorme sensação de violência, uma dor na cabeça, uma quantidade de coisas caindo sobre o carro, parecia um andaime de construção. Em seguida, a escuridão.
Então ouvi uma voz de mulher dizendo: “Moço, responde, pelo amor de Deus! Fala comigo!”.
A voz vinha de longe, desconhecida. Abri os olhos e vi uma velhinha, com a fisionomia agoniada, apertando meu braço, tremendo. Ao me ver de olhos abertos, sua fisionomia se transformou em uma expressão de alívio, enquanto falava, baixinho:
“Cê tá vivo, cê tá vivo, louvado seja o Senhor Jesus Cristo!”
Sem entender o que tinha acontecido, lembrava que eu devia estar no meio da rua, quis olhar no retrovisor interno do carro para entender se alguém tinha colidido comigo, ou mesmo capotado e me atingido. Só que não tinha retrovisor. Ou melhor, tinha, estava na altura do painel do carro. Senti o sol na careca e olhei para ver se o teto solar estava aberto. Não tinha teto solar. Eu estava com a cabeça no buraco do teto, mais alta que a capota do carro.
Ainda sem entender, senti que tinham aberto a porta do carro e me perguntavam: “Consegue sair? ”
Fiz aquela checagem rápida que a gente aprende nos cursos, mãos mexendo, pernas mexendo, pescoço mexendo, e tentei me levantar. Foi levantar e cair, completamente tonto. O rapaz que abrira a porta me segurou, então vi um tenente e um sargento da PM chegarem correndo. Não sei porque, mas reparei que eles seguravam os coldres de suas armas enquanto corriam.
O tenente segurou com força meu braço e falou: “Moço, cê tá atacado! Nada disso! Vamos agora pra esse hospital aqui, cê tá sangrando. Consegue andar? ”
Olhei para a rua, atrás do carro, e vi um verdadeiro matagal obstruindo todo o tráfego. Era um enorme galho de árvore que se desprendera da forquilha, metros acima do solo, e caíra justo em cima de mim. Enorme, atravessava toda a alameda Ezequiel Dias.
Ainda sem entender muito bem o que tinha acontecido, virei-me para o tenente e falei: “Não, tenente, vamos organizar um grupo de trabalho aqui e tentar tirar aqueles galhos da rua, estamos em pleno pico da manhã, o congestionamento vai fechar a Afonso Pena!”
O tenente crispou as sobrancelhas, me olhou bravo, segurou meu braço com firmeza e falou: “Moço, cê tá atacado! Vamos pro hospital e não tem conversa!”
Olhei para dentro do carro, meu notebook estava no banco de trás, pouco mais de um palmo o separava do teto destroçado. Meu paletó estava uns dez metros atrás do carro, na rua, perto da árvore. Uma quantidade de gente chegava, correndo, para ver o que tinha acontecido, deve ter feito um barulho enorme. No meio deles, o Gilberto Casemiro, engenheiro do DER que trabalhara comigo na Metrobel, anos antes. Pedi-lhe que tomasse conta do meu notebook, pegasse meu paletó e olhasse o carro até eu conseguir resolver o que fazer, e, obediente, segui com o tenente para o Hospital da Previdência, exatamente ao lado do acidente. No caminho o motorista do táxi que me dera passagem gritou-me:
“Obrigado, moço! Se não fosse você eu é que estaria aí debaixo dessa árvore!! Salvou minha vida!!!”
Sabe essas situações em que você parece estar vivendo e ao mesmo tempo assistindo? Foi meio isso. Fui levado para um ambulatório ou coisa assim, o diretor do hospital veio me receber, medicaram o corte que eu tive na cabeça, e uma quantidade de gente vestida de branco ou de verde chegava na porta, fazia algum comentário e saía. O diretor do hospital, desculpe-me se não lembro seu nome, falou-me que as pessoas chegando ao hospital para trabalhar viam o carro e não acreditavam que eu estivesse vivo, aí iam ver com os próprios olhos.
Então o Gilberto, que tomara conta de minhas coisas, entrou na sala e disse-me:
“Osias, melhor telefonar para sua esposa porque já vieram as reportagens da Rádio Itatiaia, Inconfidência, do Aqui Agora (era um programa de notícias imediatas de uma emissora de TV, acho que a Alterosa), da TV Globo, enfim, melhor ligar porque ela vai receber a notícia e vai se assustar”.
Respondi-lhe que não me preocupava com isso, que minha mulher, Eliana, não era de ficar ouvindo noticiário de manhã, decerto estava ouvindo seus LPs de rock progressivo, que adorava e ouvia sempre enquanto cuidava de suas atividades. Gilberto retrucou que alguém podia ouvir e lhe telefonar, então pedi-lhe que achasse um celular (coisa rara na época) para eu ligar.
Incrível, pensando daqui hoje, não conseguimos achar um celular na equipe médica! Uns dez minutos depois entra o Zé Élcio, vice-diretor geral do DER, com um celular. Parecia um tijolo, um Nokia gigante! Bom, como eu iria contar à minha mulher sem matá-la de susto? Lembrei-me então da anedota em que sua avó subiu no telhado, e resolvi seguir a excelente tática. Liguei:
“Oi, meu bem, tudo bem por aí? Imagine que me aconteceu uma coisa muito engraçada hoje: caiu uma árvore enorme em cima do Monza! ”
“Nossa! Estragou muito? ”
“Deu perda total, provavelmente. E teve outra coisa ainda mais engraçada: eu estava dentro dele!”
“Uai, e você machucou? Sua voz está normal...”
“Machuquei nada, só fiz um curativo aqui e vou para casa”.
Bom, pedi ao motorista da Diretoria para me levar para casa, e ao chegar Eliana me conta que, tão logo desligou o telefone chegou outra ligação, em que uma mulher perguntou se era da casa do Osias, que tinha sido da Metrobel. Confirmado, identificou-se como uma ex-colega de trabalho e disse-lhe ouvira no rádio que eu tinha sofrido um acidente gravíssimo na rua, queria saber notícias do meu estado. Eliana, tranquila, disse-lhe que já falara comigo, que eu estava bem e indo para casa.
Então ela me mostrou uma coisa estranha, como muitas outras que aconteceram em minha vida. Eu sempre fui um cara chato, e como a quantidade de água que eu bebia por vez era da ordem de 400 ml e para usar um copo convencional eu teria de enchê-lo duas vezes ou beber menos, eu tinha um copo maior, alto, de cristal, que comprei na Cristaleira, na Savassi, e não gostava que ninguém o usasse. Chatices de Osias... Bom Eliana disse-me que, logo após falar com a minha ex-colega, foi beber água e sem razão aparente nenhuma, meu copo estava quebrado dentro do armário. Deixara-o do jeito que o encontrara para eu ver, e de fato, estava estranhamente quebrado, a metade de cima separada da metade de baixo e caída ao lado da base, em meio aos estilhaços. Não parecia quebra de uso, mas que alguém tinha aberto a porta do armário e dado um golpe de instrumento cortante no copo. Até hoje isto me intriga, mas com tantas coisas estranhas que já me aconteceram, acabo achando que foi algum fenômeno de energia concentrada, talvez a mesma energia que desviou a árvore cinquenta centímetros da minha cabeça, ou que fez o carro estar a cinquenta centímetros para o lado.
No horário do almoço, vendo na televisão a notícia do acidente, vi os bombeiros cortando o galho da árvore com motosserra, tal a sua grossura. No dia seguinte, ao ir para o trabalho, havia uma pilha de toras de madeira na calçada. Pela informação da Prefeitura o galho quebrara na forquilha por infestação de brocas.
Muitos anos depois encontrei-me com minha amiga da Metrobel e disse-lhe que era ela meio maluca, imagine se a Eliana não ainda tivesse falado comigo, o susto que ela teria levado! E morri de ri com a resposta dela. Na época a Telemig, única empresa de telefonia, antiga CTMG, tinha resolvido fazer seu catálogo telefônico pelo prenome, então meu nome na lista era Osias B. Neto. Havia dois Osias B. Neto, um na Rua Amianto e outro na Matipó, que era eu. Ela ligou para o primeiro e apenas perguntou se era da casa do Osias, sendo confirmado fez a mesma pergunta. Disse que a mulher do outro lado da linha desatou a gritar e a chorar e perguntou como e onde fora o acidente. Minha amiga então relatou-lhe o episódio da árvore, citando a Alameda Ezequiel Dias perto do DER. A mulher então despejou um palavrão daqueles que se usam nos momentos de tensão e disse-lhe que seu marido trabalhava em uma cidade longe, acho que Manaus, e que só vinha a Belo Horizonte uma vez por mês! Antes que a sequência de impropérios se estendesse além do suportável minha amiga prudentemente desligou o telefone e discou para a casa do outro Osias, dessa vez perguntando se eu tinha sido da Metrobel.

Hoje, relembrando esses fatos todos e pensando nas coisas incríveis e maravilhosas que acontecem no mundo, tenho certeza de que todo o encadeamento dessa história foi apenas mais uma, em que eu tive a felicidade de ser um dos participantes.

Comentários

  1. Lá de cima alguém desviou um pouco a árvore... e sobrou energia pro copo.

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  2. Pela foto do Monza... Que sorte tivemos!

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